28 ANOS DO ECA: E A DIFICULDADE JUDICIAL DE IMPLEMENTAÇÃO DA LEI
Por Priscila Pires, advogada e coord.adjunta do CEDECA Dom Luciano Mendes
Com o nascimento do Estatuto da criança e do Adolescente (ECA), Lei. 8.069 de 1990, que substituiu o Código de Menores, Lei 6.697 de 1979, surge uma mudança importante de paradigma e do lugar que a criança e o adolescente são compreendidos. Diferentemente do que acontecia na legislação menorista, esse grupo social passa a ser reconhecido como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento, sendo assim, deve receber atenção especial e prioritária, acesso garantido às políticas de saúde, alimentação, educação, moradia, lazer, esporte, profissionalização, convívio social, dignidade e respeito.
É inegável o avanço legislativo deste marco legal, contudo, é facilmente perceptível uma latente dificuldade política de execução do Estatuto, mesmo após 28 anos de vigência. Para fora da letra da lei, a prática tem demonstrado imensas semelhanças na concepção da infância e juventude, também na forma de tratar, interpretar e cuidar, que nos fazem retornar ao período de vigência do Código de Menores, especialmente pelo Poder Judiciário.
A legislação menorista tinha como alvo a infância pobre, cujas famílias não conseguiam atender aos padrões moralizantes da sociedade da época, e por esta razão poderiam ser submetidas à intervenção judicial, a estes era dado o nome de “menores”. O intuito era a ambivalência da proteção à infância, mas também a da segurança social, onde a Justiça-Assistência intervinha como resposta social de controle dos pobres, especialmente por atividades policial e Judiciária.
Nota-se que até hoje é bem comum ainda chamar de “menor”, a criança ou o adolescente de origem pobre, dependente do Estado, ou que tenha passado pelo Sistema de Justiça. É tão notória a dificuldade social em transcender o período anterior, que a expressão “menor” é recorrente em matérias jornalísticas, no vocabulário comum, inclusive no jurídico, mesmo tendo sido revogada pela norma especial (ECA), há 28 anos.
Essa insistência conceitual antiga traz um conteúdo simbólico enraizado muito significativo, é possível perceber que a força de uma lei (sozinha) não é suficiente para romper com padrões repressivos e estigmatizantes, herdados de um passado histórico, político e cultural, mesmo nos tribunais.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, embora importante e fundamental, não conseguiu fazer a cisão histórica necessária para romper com o caráter paternalista das decisões judiciais, onde a Doutrina Menorista ainda é bastante presente nos julgados, só que agora maquiada de “Proteção Integral”.
O Estado-Juiz retira a criança ou o adolescente pobre do seio familiar, muitas vezes ferindo o Devido Processo Legal, ou fazendo verdadeiros malabarismos jurídicos, por entender que estas famílias pobres não têm condições de cuidar de seus filhos, ampliando o conceito de negligência como elemento criminalizador da pobreza e das mazelas que a atravessam, com pouquíssimas, e às vezes nenhuma tentativa de reintegração familiar, ou apoio às famílias. Aqui, o conceito de “família desestruturada” é resgatado do Código de Menores.
No que tange aos adolescentes acusados da prática de ato infracional, constatamos um índice excessivo de decisões judiciais de medidas socioeducativas de internação e semiliberdade, mesmo para atos com baixa gravidade, o que desponta para a alimentação dos já críticos quadros de superlotação. O problema está na persistência de uma prática repressiva e no descumprimento das garantias e prerrogativas legais. No imaginário social prevalece a ideia do confinamento e violência como freio social, o que é refletido nas decisões judiciais, indo, com isso, na contramão do norte constitucional do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente. O Estado tem sido, muitas vezes, um importante violador de direitos humanos de crianças e adolescentes.
O encarceramento em massa de uma população juvenil, que em geral é negra e periférica, revela a lógica de um sistema que reproduz, ao logo da história, injustiças e desigualdades étnico-raciais, sociais, econômicas e políticas que precisam ser compreendidas e trabalhadas por todo Sistema de Garantia de Direitos.
É preciso ter bem claro que ainda não alcançamos o que o Estatuto da Criança e do Adolescente, e as normas de proteção à Infância propõem. É preciso buscar caminhos de convergência entre a lei e a aplicação. É preciso ousar e sonhar para transformar. Garantir os direitos de crianças e adolescentes é uma obrigação de todos nós.